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Foto: Olaf Struck/Kiel

| ‘Um baile de máscaras’: montagem criativa com alguns exageros é abertura alvissareira para a temporada lírica 2018 no Rio

28/04/2018 - Por Eduardo Fradkin

Ópera de Verdi com direção de Pier Maestrini, no Theatro Municipal, tem nas vozes femininas secundárias e no trabalho cuidadoso da orquestra seus trunfos musicais

Primeira ópera a estrear no Theatro Municipal do Rio desde setembro do ano passado, “Um baile de máscaras”, de Verdi, abriu a temporada lírica carioca de 2018 nessa sexta-feira, dia 27, com visual extravagante e tecnológico servindo de ambientação para um elenco multinacional em que vozes femininas brasileiras se destacaram. Em entrevistas recentes, o diretor ítalo-brasileiro Pier Francesco Maestrini citou como referências estéticas os filmes “Matrix”, “Tron” e “Guerra nas estrelas”. Restava a dúvida: será que o resultado agradaria tanto quanto esses longas originais ou estaria mais para “Matrix revolutions”, “Tron: Legacy” e “A ameaça fantasma”?

A produção foi criada para o Teatro de Kiel, no norte da Alemanha, onde esteve em cartaz no início deste ano. No Rio, além de projeções 3D no palco, foram acrescentadas luzes coloridas aos figurinos, num trabalho feito por artesãos de escolas de samba. O risco de ultrapassar os limites do bom gosto ou de a ação da ópera não combinar com tanta parafernália era grande. Uma rápida conferida no jornal “Kieler Nachrichten” antes da estreia da ópera no Rio instigava a apreensão. A montagem era chamada de “cenicamente controversa” no subtítulo de uma crítica.
Felizmente, Maestrini evitou expedientes ridículos em voga em produções moderninhas (como, digamos, vestir algum personagem de Yoda ou, pior, de Jar Jar Binks) e botou a tecnologia a serviço da história, entregando um produto muito bem-acabado. E aquele mesmo jornal de Kiel teve razão ao apontar, no texto de sua crítica, que a encenação, em seu âmago, é absolutamente convencional. A segunda parte do primeiro ato e todo o segundo ato, que, segundo o libreto, se passam numa floresta, aqui foram traduzidos visualmente com uma… floresta!  Os efeitos 3D foram usados apenas para criar um clima sombrio e névoas coloridas (sobretudo verdes, cor que simbolizava os inimigos do personagem principal). Nenhuma iconoclastia, portanto.

Denise de Freitas é Ulrica / Foto: Fred Pontes

Foi justamente nessa lúgubre floresta que brilhou a voz da mezzo-soprano paulistana Denise de Freitas, com traços escuros que se adequavam não só à ambientação, como ao papel da bruxa Ulrica, amiga próxima de Lúcifer (não, o perfil de Facebook dela não foi projetado no palco). Seus dotes dramáticos e sua voz macia e corpulenta compuseram perfeitamente a personagem. Por comparação, a soprano italiana Susanna Branchini, no papel de Amélia, pivô do triangulo amoroso que impulsiona a ação, soou menos melíflua e menos precisa no controle de dinâmicas. É dela a ária mais bela da ópera, “Morrò, ma prima in grazia” (relembre-a aqui com Maria Callas).

O tenor italiano Leonardo Caimi interpretou o rei Gustavo III, apaixonado por Amélia, esposa de seu amigo e conselheiro Renato (a trama e os personagens da ópera são tão rasteiros, e o desfecho, com o rei moribundo irradiando bondade, é tão pueril que nem vale a pena gastar linhas com isso.  Ainda assim, é melhor que “Matrix revolutions”, “Tron: Legacy” e “A ameaça fantasma”).
A voz de Caimi, de estilo mais camerístico, foi melhorando ao longo do espetáculo. Começou pequena e revelando certo esforço, ficando mais à vontade a partir do fim do segundo ato. O Renato de Rodolfo Giugliani poderia ter mais peso dramático (sobretudo na ária “Eri tu”) e um vibrato mais sutil. A soprano coloratura Lina Mendes fez um pajem Oscar leve e encantador, aproveitando ao máximo as oportunidades da ária “Saper vorreste”.
A orquestra do teatro, sob regência muito cuidadosa de Tobias Volkmann, estava mais afiada do que no concerto de estreia deste ano, em que tocou a 2ª sinfonia de Mahler. E se os ataques poderiam ser mais incisivos e as passagens rápidas em staccato típicas de Verdi poderiam ser mais virtuosísticas, a qualidade sonora de todo o conjunto estava simplesmente impressionante ao se levar em conta as degradantes condições de trabalho a que seus músicos foram submetidos nesses tempos recentes. É evidente que esses músicos não tratam seu público com o mesmo desleixo com que são tratados pelo Estado do Rio. A orquestra podia parecer, às vezes, contida, mas nunca desconcentrada.
“Um baile de máscaras” certamente não representa o melhor Verdi, e a montagem de Maestrini, em parceria com o videomaker Juan Guillermo Nova, tem alguns exageros, redundâncias (as tais luzes nos figurinos, azuis ou verdes, reiteram quem está do lado do rei e quem são os conspiradores) e repetição de ideias (displays virtuais que lembram os do filme “Minority report” no primeiro e no terceiro atos). Mas prevalecem os méritos: é criativa, muito bem feita (há imagens deslumbrantes) e não conflita com a ação. Essas qualidades visuais, aliadas ao bom elenco e à boa atuação da orquestra, fazem da ópera uma abertura alvissareira para a temporada lírica do teatro. Os próximos atos dependem do governo do Estado. Que a nossa sorte seja melhor do que a do rei Gustavo III.