| ‘Elektra’, de Strauss, ocupa o Municipal de São Paulo
Montagem da obra-prima do compositor tem direção de Lívia Sabag, que privilegia o lado psicológico das relações familiares e aposta em atmosfera sombria para narrar a tragédia alimentada pela vingança
O mito de Electra inspirou dois grandes dramaturgos gregos. Sófocles foi o primeiro a transpor para a cena a tragédia da filha do rei Agamenon e da rainha Clitemnestra. Depois, Eurípedes escreveu também a sua versão. Foi a primeira que serviu de base para o libreto escrito pelo poeta Hugo von Hofmannsthal para a ópera Elektra, uma das mais destacadas do catálogo de Richard Strauss, que ocupa o Theatro Municipal de São Paulo a partir deste domingo, 9, para cumprir uma temporada de sete récitas, até 20 de outubro (veja agenda).
A direção da montagem, inédita na casa paulistana, leva a assinatura de Lívia Sabag e conta com elenco de peso. Na interpretação da personagem-título se revezarão a inglesa Catherine Foster (destacada no repertório wagneriano e reconhecida como uma das mais fortes Brunildas dos palcos atuais) e a dinamarquesa Eva Johansson, outra fera no repertório germânico. No papel de Clitemnestra, estarão a austríaca Natasha Petrinsky (mezzo), dona de belo timbre e emissão claríssima e a mezzo-soprano sueca Susanne Resmark, pródiga na personalidade forte e no alcance vocal.
Extensão e resistência vocais são mais do que necessárias para cumprir a exigente partitura de Strauss, que demanda fortemente dos cantores, com seus longos trechos carregados de intensidade. O mesmo acontece com os músicos – é preciso uma grande orquestra, em número e em intenção, para dar conta da intensidade musical. A Sinfônica do Municipal de São Paulo conta com quase 100 músicos para a tarefa, tendo à frente o maestro residente Eduardo Strausser.
O elenco de solistas traz ainda duas cantoras que se revezam como Crisótemis, ambas conhecidas por seus papéis no repertório de Strauss: a americana Emily Magee e a alemã Melanie Diener. O tenor inglês Kim Begley – com atuação elogiada há mais de três décadas – e o alemão Jürgen Sacher se alternam como Egisto; os barítonos alemães Albert Dohmen e Johmi Steinberg dão vida a Orestes.
Abordagem psicológica do drama
Ópera em um único ato, sem intervalos, com 110 minutos de duração, Elektra estreou em 1909 em Dresden, na Alemanha. Foi criada em um mundo já influenciado pelas recentes descobertas de Freud e seus companheiros. É natural, portanto, que a ópera tenha explorado uma abordagem mais psicológica do drama. A direção de Lívia privilegia este aspecto.
– O pensamento de Freud é muito presente no libreto. Mais do que a questão da justiça, ou da questão moral sobre ser justo ou não matar, há uma mudança no foco, para o lado dos personagens. Estou completamente ancorada na psicologia e nos problemas dessa família emocionalmente desestruturada. Na minha visão, Elektra está traumatizada, presa em um lugar emocional do qual não consegue se libertar. Refém dessas emoções, revive esse assassinato o tempo todo e não segue em frente. Clitemnestra, por sua vez, bloqueia tudo. Ela nem consegue lembrar o que a deixa tão transtornada – diz Livia Sabag, que optou por conferir aos personagens as mais reais e atuais dimensões possíveis.
A narrativa é ambientada em Micenas, logo após a Guerra de Troia. Agamenon, um dos heróis da guerra, é assassinado pela esposa Clitemnestra ao voltar para casa, com ajuda do amante. Elektra, uma das filhas do casal, anseia matar a mãe para vingar a morte de seu pai. A ação, no original, é concentrada no pátio em Micenas. Lívia amplia os ambientes.
– Quis desdobrar os ambientes domésticos para uma espécie de porão, um depósito, onde estão as coisas de Agamenon e também Elektra. Há uma copa, um hall de distribuição e um pátio, este último mais próximo do original, numa sugestão de casa rica, vitoriana, com dependências de empregados. Embora eu traga os personagens para o contemporâneo, com figurinos assinados por Fabio Namatame, estamos em algum momento do século XX, mas sem fixar uma década exata. Busco a atemporalidade. É como se essa casa vitoriana fosse dessa família há tempos, sendo ocupada por gerações sucessivas – diz a diretora, que conta com Nicolàs Boni para a cenografia.
A atmosfera é sombria e, apesar do cenário realista, foge para uma dimensão mais emocional.
– A iluminação de Caetano Vilela é bem mais emocional. E há uma quebra do realismo com as projeções que fazemos. O sombrio está muito presente. Esta é a condição de Elektra, que se encontra em uma situação muito precária – completa Livia, que já montou também Salomé, de Strauss.
Vingativo, patológico, o caráter de Electra fascina escritores desde a Grécia antiga. Sua sede por de vingança e a fixação no pai fizeram a personagem renascer em múltiplos formatos, da tragédia grega à ópera expressionista, passando pelo teatro contemporâneo, cinema e até histórias em quadrinhos. Elektra de Richard Strauss é uma pérola da produção do início do século XX que conduz a personagem, em dolorosa exposição, rumo ao seu final trágico. Não há, para ela, redenção na vingança, como diz Lívia:.
– Ela vive para alcançar seu objetivo. Mas ao conseguir, não há triunfo. Alcançar o objetivo traz a ela o esvaziamento, o não-sentido da vida.