Se Fran
k Sinatra com um resfriado era como Picasso sem tinta ou uma Ferrari sem gasolina, na célebre definição do escritor Gay Talese, o tenor paraense Atalla Ayan, na mesma agrura, está mais para um vinho com boa estrutura, taninos macios e sofisticação conferida por estágio em carvalho, mas sem a acidez para fazer o contrapeso e dar notas de frescor ao produto final. A acidez, nessa metáfora que Talese teria evitado por não ser um pioneiro enochato, equivale ao registro mais agudo do cantor. E foi poupando a voz que ele se apresentou no Theatro Municipal do Rio na noite de quarta-feira, dia 2, pela série O Globo/Dell’Arte.
O programa sofreu muitas alterações, entre as quais, a retirada da ária “Nessun dorma”. O hit de Puccini, da ópera “Turandot”, foi pedido aos berros por alguns espectadores na hora do bis, em vão. Desculpando-se, Ayan afirmou que não seria capaz de cantá-lo da forma que o público merecia. Fez ele bem de adequar o repertório aos seus recursos, pois assim manteve um bom nível artístico em tudo o que apresentou. Porém, foi um programa sem graça, leve demais. Foi um almoço com salada, entrada e sobremesa, mas sem um prato principal (essa metáfora foi para harmonizar com a do vinho).
No meio da primeira metade do recital, Ayan fez uma pausa e se dirigiu à plateia para explicar seu estado de saúde. Disse que estava se recuperando de uma “infecção horrível, que pegou até a garganta” e que o espetáculo, por muito pouco, não havia sido cancelado. Ao fim, ele não apareceu em público para receber cumprimentos (e, provavelmente, ter que dar mais explicações).
Uma fonte ligada ao tenor contou ao Tutti Clássicos que ele teve uma infecção respiratória com secreção, na Alemanha, e chegou a cantar doente lá. O quadro se agravou com uma forte gripe acompanhada de faringite. Ao chegar ao Brasil, ele foi atendido pelo otorrino Marcos André de Sarvat, que não observou danos às suas cordas vocais, mas constatou que a faringe havia sido agredida pela tosse e receitou antibióticos e cortisona.
Foto: Renato Mangolin
Foi nessas circunstâncias que se deu o reencontro do paraense com os cariocas, acompanhado da pianista portuguesa Priscila Bomfim. Em maio de 2017, a dupla havia se apresentado na Sala Cecília Meireles, com um programa bem parecido (em comum, teve: “Adelaide”, de Beethoven; “Ideale”, “Non t’amo piu” e “Vorrei morire”, de Tosti; “Il mio tesoro”, de Mozart; e “Dolente immagine”, de Bellini). Para quem o viu naquela ocasião, o recital de 2018 certamente não substituirá a memória do anterior. Mas para quem nunca havia visto Ayan ao vivo, foi a chance de conhecer o cantor que vem brilhando em grandes palcos internacionais, como os do Metropolitan Opera House, do Covent Garden, do Scala de Milão e da Deutsche Oper de Berlim.
Mesmo com as limitações físicas, que tiraram um bocado do brilho e um pouco do volume da voz de Ayan e, sobretudo, tolheram os agudos heroicos, ele conseguiu mostrar por que entrou para o alto escalão da ópera. Seus trunfos, no recital do Municipal, foram a inteligência musical (saber o que estava cantando e dar o colorido certo a cada passagem), um belo timbre (que poderia estar ainda mais aveludado se não fosse pela faringite, mas mesmo assim causou ótima impressão), carisma e uma musicalidade incontestável. Em “Il mio tesoro”, da ópera “Don Giovanni”, que tem longas passagens com fôlego único, o cantor exibiu sua impecável técnica de respiração e uma interpretação vigorosa. Na ária “Ombra mai fu”, de Händel, e nas canções de Francesco Paolo Tosti, o lirismo veio à tona, apoiado num belo legato. Mas, desse último compositor, a canção “L’alba separa dalla luce l’ombra”, que tem um longo agudo no fim, foi uma das suprimidas do programa.
Os brasileiros Villa-Lobos e Waldemar Henrique (que Ayan chamou de “Schubert do Pará”) também figuraram no programa. O bis foi apenas um, “Azulão”, de Jayme Ovalle, que o tenor disse jamais haver cantado em público. Na letra de Manuel Bandeira, o poeta manda o pássaro ir atrás de sua ingrata amada para lhe dizer que, sem ela, o sertão não é mais sertão. Não era difícil imaginar a amada fugidia como um dó de peito, nesse melancólico fim.